quarta-feira, 27 de maio de 2009

Apontamento sobre o Gafanhão e a areia - 2

Era um lençol desolador de areia branca, de dúzias de quilómetros quadrados, que os braços da laguna debruavam a norte, a leste e a ponte, isolando do contacto da vida a solidão árida do deserto.
Lá dentro, longe das vistas, bailavam as dunas, ao capricho dos ventos, a dança infindável da mobilidade selvagem dos elementos em liberdade.
Brisas do mar e brisas de terra, ventos duráveis do norte em dias de estabilidade barométrica e rajadas violentas de sudoeste a redemoinharem no céu enfarruscado de noites tempestuosas, eram quem governava o perfil das areias movediças cavadas em sulcos e erguidas em dunas de ladeiras socalcadas a miudinho.
Era assim a Gafanha do tempo dos nossos bisavôs. Deserto enorme de areia solta, a bailar ao capricho dos ventos, o “cancan” selvagem de uma liberdade sem limites.
Um dia, não muito longe ainda, um homem atravessou a fita isoladora da Ria e pôs pé na areia indomável. Não sabe a gente se o arrastava a coragem do aventureiro, se o desespero do foragido. De qualquer modo, ele fez no areal a sua cabana, à beira da água e principiou a luta de gigantes do Gafanhão contra a areia.
Em volta da sua casota, para bastar-se, semeou feijão e plantou couves. Levara consigo uma enxada e com ela principiou a luta.
A areia movediça porém, é praga da natureza, que nunca, deu couves nem pão. Escorrega debaixo das bordas das enxadas e não deixa esburacar-se, para se fazerem plantações.
Nos interstícios dos grãos poeirentos da areia, não encontravam alimento as raízes das couves, que morriam de inanição. Era um solo maldito que zombava do esforço do homem, queimando a novidade à falta de alimento.
Mas o Gafanhão não desanimou.
Dentro da água da Ria, longas hastes estendidas no sentido da corrente, vivia, presa ao lodo do fundo e alagada na salinidade, toda uma flora magnífica, rica de fosfatos, a que não custava deitar a mão.
O homem desceu à água, arrancou o moliço, enterrou-o na areia, com a sua enxada e plantou as couves de novo, em torno da cabana que construíra.
Ainda desta vez não logrou triunfar, porque o moliço foi um avo infinitesimal de produtividade que a esterilidade da areia engoliu num instante. Mas estava visto como era possível arrancar pão ao solo.

(Continua).

Texto retirado do Arquivo do Distrito de Aveiro - Volume IX de 1943, de Joaquim Matias.

Sem comentários:

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails