sábado, 23 de maio de 2009

Apontamento sobre o Gafanhão e a areia -1

Durante as próximas semanas irei transcrever, com a regularidade que me for possível, alguns textos escritos por alguns estudiosos da nossa região. Espero que contribuam, para quem não os conhece, para o conhecimento da cultura e das tradições da nossa região. Os que já os conhecem com certeza que será bom reler.
Espero que gostem.
Rubem da Rocha

Mísera consolação é, em boa verdade, para quem falha, considerar em sua consciência o exemplo de outros vencidos em combate da vida. Mas seguramente só verdadeiramente se falha, quando nos consideramos vencidos.
Os grandes triunfos, constrói-os o trabalho persistente, com grandes pedras de sonho movidas pela omnipotência da fé. Quando se apaga a fé, então sim, verdadeiramente falhámos, e ficar-nos-ão na alma, como entulho, as carradas de sonhos com que poderíamos erguer o castelo do triunfo.
Vem na Bíblia que ultrapassará os Reis quem for, em seu trabalho, persistente. E à frase de Cristo “a fé remove montanhas”, não é necessário invocar em favor dela a possibilidade do milagre, porque humanamente a vemos significar uma verdade de todos os dias.
O Gafanhão é isto mesmo: um homem persistente em seu querer, teimoso no trabalho, inquebrantável na fé de vencer. E há-de haver um dia, por justiça imanente da vida cinzel ou caneta de homem de génio que materializa em forma artística, a epopeia sublime desse camponês que ninguém conhece, quando ele é maior ainda do que o guerreiro da reconquista e o marinheiro das descobertas.
A Gafanha é hoje uma grande arca nacional de pão. E nunca demais enalteceremos o labrego rude que lhe despejou a areia e a encheu de feijão e milho.
Fica situada entre os dois braços da Ria de Aveiro que da Barra se dirigem para o sul, grosseiramente paralelos, um até ao cais do Porto da Cruz, para os lados de Mira, outro por Ílhavo e Vagos, até à Ribeira do Boco.
Considerando o nome Gafanha, é-se tentado a supor que ali fosse em remotas eras a gafaria, para onde se enxotassem os leprosos do reino. E mais esta suposição nos tenta, se repararmos que tudo aquilo era um deserto imenso, sem água nem folha verde. Esta hipótese, no entanto, nem a história a confirma nem a aceita a filologia. Apenas hoje se antolha a leigos e não tem outro valor que não seja o de imagem de recurso para retratar-se a aridez do sítio. (Continua).
Texto retirado do Arquivo do Distrito de Aveiro - Volume IX de 1943.

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