quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O linguajar dos gafanhões (parte III)

O seu linguajar é, portanto, filho de todas essas circunstâncias e resulta, vezes sem conta, da corruptela de vocábulos e expressões ouvidas das pessoas com quem contactavam, sem acesso a literatura ou a meios de comunicação social, embora na região já houvesse jornais e em algumas casas, muito poucas, um ou outro aparelho de rádio. Estamos a recordar as cerimónias de Fátima, sobretudo no dia 13 de Maio, participadas em casa de um abastado lavrador. Todos sentado no chão da sala, lá íamos ouvindo a transmissão com o dono do aparelho a acertar de quando em vez a sintonia. Era o que havia na nossa já distante meninice, que recordamos com imensa saudade pelo bucolismo que a envolvia.
Também não podemos esquecer os gafanhões que, nos finais do século XIX e princípios do século XX, aprendiam a ler pouco mais que o “b à bá” em casa de mestres populares, alguns dos quais deixaram marcas que o tempo não apagou. À hora da sesta, no Verão, ou ao serão, no Inverno, os mais atrevidos pelas coisas do saber e da cultura lá sacrificavam horas de descanso, no meio ou ao fim de um dia de trabalho duro, para aprenderem as primeiras letras na Cartilha Maternal de João de Deus, ou letras grossas que vinham da arte natural dos senhores mestres, os “sábios” da aldeia que liam e interpretavam, para quem necessitasse ou os quisesse ouvir, os editais afixados às portas das igrejas ou as notificações dos Tribunais, das Finanças ou militares. E era esta leitura periclitante, aprendida em tempos de lazer, embora poucos e nem sempre frequentes, que facilitava, a alguns, a interpretação de livros de devoção popular, os romances célebres, para raros leitores, de certos clássicos, sem esquecer a literatura de cordel, carregada de dramas passionais e de aberrações da natureza, que era vendida de feira em feira ou de romaria em romaria, por cantadores e cantadeiras que sabiam pôr angústia contagiante em tudo o cantavam. E a propósito, como seria interessante fazer um levantamento dessa literatura de cantar e de ler, e que passava de boca em boca, que os nossos avós tanto apreciavam e que deve andar perdida por alguma arca já carcomida pelo caruncho. Também nos alfarrabistas dos grandes centros ela deve ser procurada, ou, ainda, na memória dos nossos velhinhos mais dados a reterem as coisas do passado, como que a quererem ficar perpetuamente agarrados à sua meninice e juventude.
(Continua)
Artigo da autoria do Prof. Fernando Martins e publicado no Livro do XV Festival, realizado em 10 de Julho de 1999.

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