quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

As mulheres da Gafanha (parte IV)

Diz Maria Lamas, entre outras considerações, que desempenhava o seu cargo “com firmeza” e que se distinguia das suas subordinadas pelo aspecto, “porque se veste e penteia de maneira mais apurada”. No entanto, “conserva o ar desembaraçado e decidido que caracteriza as mulheres do povo daquela região”. E adianta: “O que interessa especialmente neste caso é o facto de ela ter conseguido, pelas suas qualidades de trabalho e disciplina, ascender ao lugar de encarregada, com enormes responsabilidades, numa empresa importante.” Noutra passagem do livro, canta um hino a estas mulheres, cujas histórias decerto muito a sensibilizaram, hino esse que aqui transcrevemos: “Mulheres da Gafanha, à hora em que vão levar o almoço aos homens que trabalham nos estaleiros. A vida duríssima que levam, naquelas terras que outrora foram dunas batidas rijamente pelo mar e que são hoje solo fertilíssimo devido ao seu labor constante, marca-lhes as feições e dá-lhes um todo viril, decidido, forte. Nenhuma tarefa as faz recuar. São, quase todas, mulheres de pescadores de bacalhau ou de operários, e elas próprias trabalham no que se lhes proporciona, quando não é preciso sachar o milho ou colher a batata, muito abundante ali. A sua existência passa-se em permanentes fadigas e sobressaltos. Usam uma linguagem desabrida, que chega a ser chocante, porque se habituaram a encarar a vida e as pessoas de forma hostil, à força de lutar e sofrer de muitos modos. Tudo se resume, porém, a um desabafo, tão natural, para elas, como respirar, rir ou falar. Bravas mulheres, as da Gafanha! No fundo, todas as mulheres do povo se parecem umas com as outras, vivam onde viverem. Pode variar o aspecto exterior, mas a sua natureza é a mesma. Mais ou menos rudes, conforme o seu nível de vida, todas são irmãs na luta, na resistência ao trabalho e ao sofrimento, no heroísmo obscuro com que suportam o peso de uma existência sujeita às suas inclemências. Instintivas e directas, na sua maneira de encarar as realidades, não podem ser julgadas apenas pelo que fazem e dizem. A força que as impele tem raízes fundas, na terra e na própria vida.” Mais adiante, tece algumas considerações sobre as raparigas da Gafanha, sublinhando: “Estas jovens do povo parece que se vão distanciando, no trajar e nos gostos, das suas mães. Trabalham na terra, quando a faina da seca termina, mas quando vão à cidade apresentam-se vestidas como se lá vivessem. Gostam de ir ao cinema, se têm ocasião para isso; discutem o ‘que se usa’; são raras, porém, as que mostram interesse pela leitura. Casam, quase sempre, com operários dos estaleiros ou pescadores de bacalhau. Depois de casadas perdem muito da sua vivacidade e até o gosto na sua pessoa – a não ser uma ou outra de personalidade mais definida. A pouco e pouco vão seguindo o caminho das outras mulheres que, antes delas, foram novas, engraçadas e um tanto rebeldes contra o pensar das mães. Insensivelmente, adaptam-se à vida sacrificada, em que tudo é trabalho, sobressaltos e luta pelo pão. Mesmo quando conseguem certo desafogo económico, o espírito mantém-se-lhes embotado e alheio ao progresso do Mundo, fora dos seus interesses pessoais e imediatos.”
Fim
Artigo da autoria do Prof. Fernando Martins e publicado no Livro do XX Festival, realizado em 10 de Julho de 2004.

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