quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O linguajar dos gafanhões (parte I)

Retrocedendo no tempo, qualquer coisa como meio século, tanto quanto é necessário para chegar à nossa infância, vislumbramos na memória, qual retrato ainda não embaciado pela pátina do tempo, os gafanhões que ajudaram a erguer esta terra, marcada à nascença por uma mistura de povos na sua maioria semianalfabetos ou mesmo analfabetos, sob o ponto de vista académico, sobretudo, mas obstinados no seu querer. De vontade indómita, trabalharam a terra, primeiro, coisa que sabiam fazer como poucos, ou não estivessem eles habituados a lavrar e a cavar areias movediças e esbranquiçadas, que pouco lhes oferecia de volta, e aventuraram-se na ria e no mar, depois, numa ânsia desmedida de irem mais além. E nessa labuta diária, que deixou marcas indeléveis no temperamento e no carácter dos gafanhões , doaram-nos uma cultura de que hoje nos orgulhamos, nós, os que presentemente somos os legítimos herdeiros desses cabouqueiros das Gafanhas que se deixam beijar pela ria e pelo mar, com ternura, e que depois partem à procura de novos mundos.
Cultura essa que tem sido, desde a primeira hora, no já distante século XVII, e até aos nossos dias, mesclada de outros saberes e dizeres vindos um pouco de todo o país, dando-lhe um sabor que se vai perdendo no tempo. Hoje, com a evolução do ensino e com a influência dos diversos meios de comunicação social, e também graças ao contacto com povos de todo o mundo, que a vida do mar proporciona, os gafanhões já falam mais escorreitamente, de maneira bem diferente, por exemplo, dos tempos da nossa meninice, da década de 40, a que estamos a conduzir a memória já gasta pelos anos, é certo, mas felizmente lúcida para ouvir o linguajar cantado do nosso povo, nas fainas da ria e do mar, e principalmente nas tarefas do campo, por onde brinquei por cima de restolhos com bolas de trapos, entre searas ao escondedouro, na estrada aos "calarotes", aos ninhos na mata da Gafanha que pouco depois via nascer a Colónia Agrícola, na borda à pesca da macaca, do caranguejo e de algum perdido robalito.
(Continua)
Artigo da autoria do Prof. Fernando Martins e publicado no Livro do XV Festival de Folclore, realizado em 10 de Julho de 1999.

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