quarta-feira, 10 de junho de 2009

Apontamento sobre o Gafanhão e a areia – 5

Ao norte, formava a população a Gafanha da Nazaré. Mais abaixo, à beira do canal ocidental, surgira a Gafanha da Encarnação. Mais a sul, a Gafanha do Carmo. E para baixo desta, a Gafanha da Boa-Hora.
Uma população numerosa e trabalhadora conquistava com a sua enxada o areal desértico e realizava, à custa de um esforço hercúleo e de uma persistência sobre-humana, um grande sonho que havia sido sonhado pelo primeiro Gafanhão que na hostilidade da areia construíra um dia a sua cabana e plantara as primeiras couves.
Principiaram a vingar as searas de milho e feijão. Veio a batata depois, o grão-de-bico, a melancia e a cebola. E uma torrente de fartura manou da terra para as caixas do Gafanhão.
Chegaram negociantes em seguida, à compra dos géneros, e deixaram dinheiro. Para absorve-lo, vieram as lojas e os homens de negócio com relações em outros centros. Metade dos braços que haviam conquistado a areia à improdutividade era agora dispensáveis e emigraram para a América, donde alguns voltaram ricos.
Então o Gafanhão abriu através da areia estradas que asfaltou, por onde rola o seu automóvel de “novo-rico”. Se é proprietário, construiu à beira da estrada o seu palacete e mandou o filho a Coimbra formar-se. Formou sociedades de pesca de bacalhau, construiu estaleiros, fez navios, recrutou pescadores entre os Gafanhões mais pobres e mandou-os à Terra Nova e Gronelândia.
Hoje é a Gafanha um solo riquíssimo, arca de pão nacional que exporta centos de toneladas de todos os géneros para regiões de terra ingrata, onde o trabalho não frutifica.
É um milagre de esforço e de persistência de um rude camponês desconhecido cujo trabalho é uma epopeia grandiosa. É um monumento de triunfo de um homem teimoso que lutou e venceu, ganhando uma vitória tão deslumbrante, quão fantástica foi a luta que sustentou sem desânimo nem fraqueza de espírito.
Aliás, o Gafanhão continua sendo ainda hoje o que ontem foi: persistente e fechado consigo, empreendedor e quase nada comunicativo. No ambiente que a si próprio se criou, foi modelando um carácter de homem só, de lutador que sabe até onde contar consigo, e em pouco se fia do auxilio que possa advir-lhe de alguém ou de algures.
(Continua).

Texto retirado do Arquivo do Distrito de Aveiro – Volume IX de 1943, de Joaquim Matias.

Sem comentários:

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails